Meu pai morreu esperando minha liberdade”; 30 anos depois e morando em Blumenau, Osvaldo Marcineiro fala sobre Caso Evandro

Gerações anteriores conhecem o caso como “bruxas de Guaratuba”. Já os mais jovens provavelmente ouviram falar como o “Caso Evandro”. A história dos sete condenados pela morte do menino Evandro Caetano no litoral paranaense em 1992 em um suposto ritual satânico rodou o país e acabou impactando até mesmo a história de Blumenau.

A repercussão do crime ultrapassou os noticiários criminais após o jornalista curitibano Ivan Mizanzuk levar o caso para o podcast Projeto Humanos. A temporada “Caso Evandro” virou série na Globo play e trouxe novas provas que colocaram toda a investigação em xeque.

O principal acusado, o então pai de santo Osvaldo Marcineiro, esteve preso até o fim de 2006 como o assassino do menino de seis anos. Após ser libertado da prisão, ele decidiu se mudar para Blumenau e ficar com a família.

Foi apenas no ano passado, com a série mudando a visão do público sobre o caso, que ele teve coragem de falar publicamente sobre o que passou atrás das grades e tentando reconstruir a vida.

“Como superar as perdas? Meu pai faleceu enquanto eu estava preso, pedindo pra que a família não me abandonasse. Perdi contato com minhas três filhas por anos. Meus dois filhos não puderam terminar os estudos. Só vamos superar quando o crime for revisado e tirarem esse peso da gente. As lembranças sempre vão existir, assim como pessoas que ainda acham que somos culpados”, conta Osvaldo, hoje com 60 anos.

Em 1992, Evandro Ramos Caetano, na época com seis anos, desapareceu a caminho da escola em Guaratuba (PR). Cinco dias depois, o corpo de uma criança foi encontrado em um matagal sem as mãos e dedos dos pés, dificultando a identificação. A vítima também estava sem órgãos internos.

Foto de Evandro que foi espalhada após seu desaparecimento. | Foto: Divulgação

Na época, o Paraná era assombrado por diversos desaparecimentos infantis. A Polícia Civil se envolveu no caso, mas não encontrou provas contra ninguém, tendo investigado inclusive Osvaldo Marcineiro. Foi quando a Polícia Militar começou uma investigação paralela que o então pai de santo foi preso.

A investigação é atualmente considerada imprópria e cheia de furos. O nome dos demais envolvidos teriam sido tirados de Osvaldo por meio de tortura. Dentro da teoria apresentada pela PM, que envolve um “ritual de magia negra” por poder e dinheiro, quem teria encomendado a morte da criança seriam a esposa do prefeito de Guaratuba na época, Celina Abagge, e a filha dela, Beatriz Abagge.

Cinco dos acusados foram gravados “confessando” o crime à Polícia Militar, mas logo após denunciaram terem sido vítimas de tortura para falar o que os policiais queriam. Ainda assim, foram julgados e quase todos condenados. Foi apenas em 2020, após o podcast Projeto Humanos, que fitas que comprovariam as torturas vieram a público.

“Nenhum de nós têm nada contra a instituição Polícia Militar. Respeitamos o órgão e reconhecemos a importância dele, assim como o Ministério Público. O que criticamos é aquele grupo que nos torturou e o promotor do caso, Paulo Sérgio Markowicz”, ressalta Osvaldo.

O caso já passou por cinco julgamentos diferentes. Um deles, em 1998, foi o tribunal do júri mais longo da história do judiciário brasileiro, com 34 dias. Beatriz Abagge ficou presa por cinco anos e nove meses.

Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares e Vicente de Paula Ferreira ficaram presos entre 1992 e 1996. Durante um ano e oito meses eles ficaram na solitária. Sem direito a banho, cortes de cabelo ou cuidados. Para Osvaldo, tudo isso foi feito para criar a imagem de que eles eram “bruxos”.

Em 1997 receberam liberdade domiciliar, mas foram encarcerados novamente em 2003 para serem julgados no ano seguinte. Na virada de 2006 para 2007 conseguiram a liberdade condicional e foram oficialmente considerados livres em 2015.

Fotos dos acusados na época do crime. | Foto: Globo Play/Reprodução

Em dezembro do ano passado a defesa do trio protocolou um pedido de revisão criminal para Osvaldo, Beatriz e Davi usando como base as fitas que comprovariam as torturas. Além de absolvidos, eles querem ser reparados pelo período que cumpriram sentença.

“Todo o tempo que eu fiquei no presídio, quase uma década fechado e um ano e oito meses num buraco da solitária, não sei como não deixou a gente louco. Por mais que não seja sobre o dinheiro, não vou ser hipócrita e dizer que não quero a indenização. Poder bancar o estudo dos meus filhos é o que eu mais sonho”, comenta Osvaldo.

Celina Abagge acabou nunca sendo condenada, por já ter mais de 70 anos quando foi para o último júri. Vicente de Paula Ferreira nunca conseguiu a liberdade e morreu de câncer na prisão em 2011.

Francisco Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli dos Santos foram absolvidos em 2005, pois foram presos sem nunca terem confessado.

Natural de São Paulo, Osvaldo se mudou para o Paraná na década de 1980. Porém, após as prisões, acabou se mudando para Blumenau em 2007, onde a mãe e irmã moravam. De início, o recém libertado tinha receio até de ir ao portão de casa, com medo de ser reconhecido.

“Saí sem rumo, com a família destruída e tudo perdido. Cheguei aqui me sentindo um cachorro perdido. Todo mundo me olhava. Se alguém me cumprimentava na rua, eu achava que sabia dos crimes. O medo era muito grande”, desabafa.

Um dos requisitos da liberdade condicional de Osvaldo era que ele tivesse um emprego. Porém, sempre que chegava perto de conquistar uma vaga, ela escapava pelos seus dedos. Ele conta que ninguém nunca deixou claro o motivo, mas ele sabia que era por ser ex-detento.

Buscando se reconectar com a fé, ele passou a frequentar o terreiro de umbanda da irmã no bairro Escola Agrícola. Não demorou muito para ele ser denunciado e intimado na delegacia. Aì, descobriu que mesmo dentro daquele espaço haviam pessoas com medo de quem eles acreditavam ser um “bruxo”.

“Cheguei com muito receio, já acompanhado de um advogado, mas o delegado foi muito bacana comigo. Disse que não acreditava que eu tinha cometido o crime e que tinha ouvido falar muito bem de mim. Mas tive que me isolar até da minha irmã, para que ela não perdesse o terreiro dela”, relembra.

Alice Kienen Gramkow/O Município Blumenau

O sofrimento continuou perseguindo Osvaldo. Logo, ele perdeu a irmã e a mãe. No início da década de 2010, ele conseguiu montar uma auto elétrica na rua Fritz Spernau, a popular “rua da Coca”, no bairro Fortaleza. O movimento era grande e tudo parecia ir bem, mas em um aniversário da empresa tudo foi por água abaixo.

“Estávamos comemorando com funcionários e clientes quando uma criança entrou e falou ‘tio, o senhor vai me matar? Vai comer meu coração?’. O pai dele, que era meu amigo, tentou se explicar e acabou contando a história para todo mundo. Quem não sabia, ficou sabendo. E assim começamos a perder clientes”, conta.

Com o tempo a auto elétrica foi alvo de pichações atacando o “bruxo” e Osvaldo sentiu necessidade de se esconder novamente. Deixou a empresa com um sócio, mas em 2016 o negócio precisou ser fechado. A família voltou à estaca zero.

Marcineiro acabou conseguindo empregos em alguns restaurantes, mas nunca durava muito tempo. Foi então que ele decidiu se unir à esposa, Luciane, para fazer marmitas. Com o sucesso do negócio, o casal abriu um restaurante – e em seguida, um segundo.

“Estávamos melhorando de vida, mas um dia chegamos e nenhum funcionário estava lá. Depois de dois dias tentando contato, uma menina nos explicou que eles tinham descoberto sobre ‘o bruxo’. Acabamos cansando e logo um dos proprietários pediu o ponto, então fechamos”, relata.

Na época morando na rua 7 de maio, na Itoupava Norte, ele precisou levar todos os equipamentos do restaurante para casa. Como é tradicional de Blumenau, o rio acabou enchendo e uma enxurrada fez com que ele perdesse tudo novamente.

Atualmente, o casal alugou uma casa em uma região isolada da cidade para ficar longe do público. Seguem trabalhando com entrega de marmitas e planejam voltar a produzir lanches. “Estamos vendendo o almoço pra pagar a janta”, conta Osvaldo.

Por muitos anos Osvaldo perdeu contato com as três filhas do primeiro casamento, mas hoje retomou o relacionamento. Enquanto aguardava julgamento, ele teve outros dois filhos. Kaue e Kauan eram pequenos quando o pai foi preso e acabaram vindo para Blumenau morar com ele.

Entretanto, finalmente terem reencontrado o pai não trouxe apenas a alegria esperada, porque a convivência veio acompanhada do preconceito. Os meninos acabaram nunca finalizando os estudos por conta do bullying que sofriam na escola.

“Eles estudavam na Itoupava Norte e um dia chegaram chorando porque tinham sido chamados de bruxinhos. Não quiseram mais ir pra aula com medo. Eles acabaram se fechando do mundo. É muito difícil ver um filho teu nessa situação”, relembra.

Felizmente, os meninos se dedicaram à música e lançaram rimas em homenagem ao pai. Porém, durante o período em que viveram o medo do preconceito, a família acabou escondendo o sobrenome para se proteger.

“Quando vim pra cá usava o nome de um santo, Caçador. Era como todos me conheciam. Depois que a série saiu e as pessoas começaram a nos apoiar e meus filhos mudaram o nome no Facebook para adicionar o sobrenome ‘Marcineiro’ foi o maior orgulho”, conta em lágrimas.

Osvaldo à frente com a esposa Luciane. Da esquerda para direita, os filhos Richard, Kaue e Kauan. | Foto: Arquivo pessoal

A série também trouxe uma terceira alegria para Osvaldo: ele pôde conhecer um filho que nem sabia ter. Antes de ser acusado, ele havia namorado uma menina libanesa por seis meses. Entretanto, quando o pai muçulmano soube da religião do namorado, separou os dois.

“Um dia minha esposa chegou dizendo que uma mulher ligou dizendo que o esposo dela me procurava há anos. Ia em presídio e delegacia procurando o pai. Quando viu que eu não quis participar da série de início, até chorou. Mas depois que me encontrou, o Richard veio morar pra cá também”, comemora.

Por conta das inúmeras reportagens negativas a seu respeito, Osvaldo se isolou da mídia. Nem assistia televisão, apenas para acompanhar jogos de futebol e ver alguns filmes. Seu refúgio era o videogame, que descobriu com os filhos.

“Só assim conseguia passar horas sem pensar na prisão. Eu tinha que remoer algo que nem fiz. Ao mesmo tempo em que não conseguia ver, queria saber o que estavam falando. Eu só queria entender por que passei por aquilo, queria uma resposta, mas as imagens na cabeça eram muito negativas”, explica.

Osvaldo conta que até hoje ainda acorda assustado, relembrando o que viveu após ser preso e enquanto estava encarcerado. Segundo ele, o que mantinha a esperança era a certeza de ser inocente e o apoio dos colegas de cárcere.

“Nós apanhávamos muito da guarda carcerária, mas os outros presos sempre nos apoiaram. Eles acreditavam na nossa inocência. Durante as torturas até os policiais falaram que eu era um idiota, porque não sabia de nada. Eu só pedia pra eles o que tinha que falar para parar de apanhar”, relembra.

Desde aquela época, Osvaldo carrega marcas no corpo dos eletrochoques que teriam recebido. Cicatrizes idênticas às de Beatriz Abagge e Davi dos Santos Soares. Apesar de que a maioria fica em partes do corpo que não são expostas.

Alice Kienen Gramkow/O Município Blumenau

“Muita gente diz que não tem medo de morrer. Muitos já me disseram que nunca confessariam um crime que não cometeram. Mas nada disso é possível quando você está sendo afogado e eletrocutado ao mesmo tempo. Você faz tudo que pedirem para acabar logo”, alega.

Atualmente o morador de Blumenau não exerce mais a religião. Durante tudo que passou, chegou a questionar sua crença. Porém, relata que a fé foi o que manteve ele firme. Junto da certeza da inocência e do apoio da família.

“Eu estava sempre esperando ser libertado. Tinha certeza que o Evandro ia aparecer. Até hoje acredito que ele está vivo. Nunca imaginei que seriam as fitas que nos inocentariam”, conta.

Ainda assim, até hoje, Osvaldo sofre com toda intolerância e preconceito que enfrentou nas últimas décadas. Um sentimento banal para a maioria, como ser reconhecido na rua, sempre vem carregado de pânico para ele.

“Esses dias uma pessoa estava insistindo que eu não era estranho. Eu tentei desconversar, já achando que seria algo negativo, mas era um amigo que tinha conhecido na casa do meu primo anos atrás. Para ele era algo bom, mas eu sempre espero o pior”, exemplifica.

Em janeiro deste ano o governo do Paraná fez um pedido de desculpas oficial aos condenados. O secretário estadual de Justiça, Trabalho e Família, Ney Leprevost, reconhece as provas trazidas pelo podcast e pela série e afirma que acredita que eles foram vítimas de tortura.

“Expresso meu veemente repúdio ao uso da máquina estatal para prática de qualquer tipo violência, e neste caso em especial contra o ser humano para obtenção de confissões e diante disto, é que peço, em nome do Estado do Paraná, perdão pelas sevícias indesculpáveis cometidas no passado contra o senhor”, afirma o documento.

Um grupo de trabalho foi formado pela secretaria para reavaliar o caso. Após os resultados, o secretário afirmou que “formei convicção pessoal de que são muitas as evidências que  o senhor e outros condenados no caso foram vítimas de torturas gravíssimas, as quais podem ser configuradas como crime e tais práticas são totalmente inaceitáveis e indefensáveis”.

Uma cópia da carta também foi encaminhada ao Poder Judiciário, para que o grupo possa ser inocentado. Os pais de Evandro Caetano também receberam um pedido de perdão pela “questionável legalidade” da investigação, o que tornou a família incapaz de desvendar a verdade.

“Sempre esperamos um reconhecimento da verdade. Não esperávamos que seria com as fitas, mas agradecemos muito o secretário. Foi um alívio, um peso retirado dos nossos ombros. Ver as pessoas acreditando na gente”, diz Osvaldo.

Durante a vivência traumática no presídio, Osvaldo, Davi e Vicente decidiram que lutariam contra injustiças e preconceitos quando saíssem da prisão. Apesar de Vicente não ter sobrevivido para cumprir a promessa, os dois amigos mantiveram a palavra.

“Não temos como voltar em 92 e consertar o que aconteceu, mas podemos passar essa mensagem para que não aconteça com outros. Deixar claro que intolerância é crime e precisa ser denunciado”, defende Osvaldo.

O grupo conta com apoio de profissionais como advogados, jornalistas, psicólogos, professores. Entre eles o delegado Luiz Carlos de Oliveira, que acompanhou o caso. “Devo muito a ele, foi nosso anjo de luz desde 1992, porque acreditava nas torturas”, complementa.

Atualmente o grupo no Facebook conta com mais de 1 mil integrantes. A dupla também mantém o trabalho no YouTube, com um canal para Osvaldo Marcineiro e outro para Davi Soares dos Santos.

“Nosso alicerce é a injustiça do Caso Evandro, erros judiciários. Mas também é contra homofobia, xenofobia, sexismo, racismo… Não preciso ser parte de um grupo para ser contra o preconceito. Queremos dar voz para essas pessoas e denunciar injustiças”, ressalta Osvaldo….

O MUNICÍPIO

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